terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Carta de Guia - José Paulo Paes

Carta de Guia

I
Nossa vida
Construímos
A cada passo,
A cada minuto,
A cada esquina,
De mãos unidas.

II

Sempre teu rosto e o crepúsculo
Em teus olhos a viagem das nuvens
É um estranho presságio
Que evito decifrar.

III

Caminhemos
Sem perguntas
Como os suicidas
Que jamais indagam
A profundidade do abismo.

IV

Sob a chuva de verão,
Contra as colunas da lei,
Sobre o corpo do soldado,
Com o estandarte rasgado
De qualquer revolução.

V

Vivemos, Dora, na certeza
de sermos amanhã
o que ontem não fomos.

   José Paulo Paes (1951)



Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

                           Luís de Camões

(http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v301.txt)

Todas as cartas de amor... (Poesias de Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)



Álvaro de Campos, 21/10/1935

Presságio - Fernando Pessoa

Presságio
Fernando Pessoa


 O AMOR, quando se revela,
 Não se sabe revelar.
 Sabe bem olhar p'ra ela,
 Mas não lhe sabe falar.

 Quem quer dizer o que sente
 Não sabe o que há de dizer.
 Fala: parece que mente...
 Cala: parece esquecer...

 Ah, mas se ela adivinhasse,
 Se pudesse ouvir o olhar,
 E se um olhar lhe bastasse
 P'ra saber que a estão a amar!

 Mas quem sente muito, cala;
 Quem quer dizer quanto sente
 Fica sem alma nem fala,
 Fica só, inteiramente!

 Mas se isto puder contar-lhe
 O que não lhe ouso contar,
 Já não terei que falar-lhe
 Porque lhe estou a falar...



24/04/1928



Disponível em: <http://www.releituras.com/fpessoa_pressagio.asp> acesso em 25 fev. 2014.